E agora você?
- Rodrigo Bartz
- 4 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de ago. de 2020
Rodrigo Bartz

Aposentado, trabalhador, contribuiu toda vida. Seu nome era José. Há cerca de dois anos perdeu a mulher. E agora José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho. Para afogar a saudade adquire um cachorro. Perfeita escolha. O cachorro era literalmente seu melhor amigo. Aonde ia seu José, seu fiel escudeiro corria atrás. E ficava uma brabeza só, bastava alguém aproximar-se.
Certo dia, seu José sente uma dor no pescoço. Pensa ser apenas consequência de uma noite mal dormida, pois dividia a pequena cama com seu cachorro, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode. Resolveu ir ao médico no posto de saúde.
No dia seguinte, acordou as 03:30 da madrugada, porque – mesmo com uma saúde de dar inveja a muitos, conhecia a fama da saúde pública e do postinho. Sabia que as filas dobravam quarteirão.
Pior de tudo que – por coincidência, apego, destino, no mesmo dia o cachorro de seu José adoeceu.
Seu José foi atendido; enfim. A consulta durou pouco mais de um minuto. Exames, remédios, marcação de novas consultas. Passando na farmácia do SUS, recebe a notícia de que ali não tem remédios, estão em falta. Quase de noite, volta para sua casa, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
No outro dia, mesmo horário e local conversando com a secretária seu José é informado de que haverá exame pelo SUS somente daqui a seis meses. Como assim; pensa seu José. Em seis meses já posso estar morto. De cabeça baixa, volta pra casa. Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse.... Mas você não morre, você é duro, José!
Ele era assalariado ganhava pouco demais. E a desistência do exame particular veio com a ligação para um consultório médico. Sem convênios, o exame sairia R$ 150,00 reais e os medicamentos R$ 250,00 reais. Sem condições.
E o aluguel, e a comida. E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio, - e agora?
Preocupado com seu cachorro liga para o veterinário e relata os sintomas do bichinho. Pelos fatos relatados, recebe do veterinário o veredito que jamais gostaria de ter escutado. Provavelmente, o cachorrinho, estaria com câncer. Cirurgia e consulta, metade de seu salário. Seu José fez o que pode com chás, receitas caseiras, mas a doença era grave demais. Não somente a do animal, seu José que sempre fora magro, agora era pele e osso. Até nesses momentos, o cachorrinho foi companheiro. Tomavam todo dia os chás receitados pela vizinhança.
E, assim, foram definhando, emagrecendo os dois, morrendo aos poucos. Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? E agora, José? A festa acabou a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?
Cinco meses depois a secretária do posto de saúde liga para a casa de seu José, com o intuito de avisar que a consulta havia sido adiantada dez dias. O sobrinho do velhinho é quem atende e avisa que fazia uma semana, mais ou menos, que seu José e seu cachorrinho haviam morrido. Ah! Obrigada é a resposta da secretária. Que desliga o telefone e avista em sua frente outro seu José querendo marcar um exame...
E agora José? E agora você?
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